Lady Mimi

Vejo-a entrar, cambaleante pelo sinistro jardim adentro. Assim que entra, a sua respiração pesa, o seu corpo mirra, parece ainda mais velha, os 84 aproximam-se dos 100, carrega às costas, o peso de toda a dor do mundo e os seus vincos de pele bem tratada mostram-se agora rugas muito vincadas de alguem que passou metade da vida a chorar, numa expressão de desespero contida.


 Vejo a forma como anda, querendo acelerar o passo,mas quase se desequilibrando,estou quase lado a lado com ela, ela olha-me, dá-me o braço para que a ampare, e apressa-me fazendo sinal para os 4 à nossa frente. Neto por afinidade como costuma dizer , bisnetos e marido, vão à sua frente, no seu passo habitual mas bastante mais rápido que o dela apressado. E ela, parece indignada. E tenta andar cada vez mais depressa.
Tento ler-lhe a expressão em silencio. Parece querer gritar"eu quero ser a primeira a chegar! Ele é meu ! Fui eu que o tive! Foi de mim que nasceu !" , perante os meus pensamentos morbidos, a garganta fica apertada, olho para a minha Mimi, e estamos em sintonia, ela olha-me de lagrimas no rosto, respira fundo, interrompida por dois soluços
. É sempre assim, cada vez que lá vamos. Há já mais de 21 anos. Todos sabemos para o que vamos, no entanto, no fundo dos olhos da avó parece haver sempre uma esperança que tudo seja mentira, especialmente quando nos aproximamos do sitio onde o teu corpo repousa. Diz nos sempre "Mas é aqui? Não é aqui" Como se houvesse a esperança de um engano, como se não passasse tudo de um pesadelo e a qualquer momento tudo fosse passar e o seu menino lhe voltasse para os braços. Enquanto fazem os rituais que abomino de lavagem de campas e trocas de flores de pastico e as crianças fazem corridas de um lado para o outro e correm para longe, finalmente, sempre tenho desculpa para fugir aquele terror, a imagem da avó não me sai da cabeça. Que mulher forte. Toda a vida a trabalhar, casamento com a melhor pessoa do mundo mas que como marido não valia um chavo, retorno de Africa recomeçar a vida a zeros, doença prolongada de um filho, morte do filho, criar a neta, relaçoes cortadas com a filha que lhe restou, e...Deus...é isto? É assim um fim de vida para alguem que sempre recorreu tanto a ti? Que passou ferias em Fátima que adora o Papa e os Santos, que não perde uma missa, que reza o terço todas as noites? Temos que aceitar? É assim a vida? E assim será... todas as datas que decidirem que devem ir ao cemitério. Lá iremos com eles, eu eles, a unica familia que tenho , os meus filhos que se abraçaram a ver a avó chorar e a abraçaram.Sem perceber muito bem o que se passava... Porque uma dor assim, mãe nenhuma esquece. E ainda me apontou o dedo à cara no fim delegando me pela centésima vez a mesma responsabilidade "Olha que quando eu morrer quero ir para a campa do meu filho hein???" "Sim, avó..."digo eu, sem sequer querer imaginar esse dia e quase que pedindo para ir um dia antes para não ter que assistir a tal. Haverão sempre palavras para dizer sobre isto. E enquanto houver mimi, haverá alguem que anda com dificuldade, naquele jardim sombrio, arranjado, onde reina o silencio, e passeia a saudade

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Sobre a autora:

Chamo-me Marta, e sou apaixonada pela escrita e pelo mundo da beleza. Em 2013 , após um curso de maquilhagem profissional decidi juntar os meus dois amores, criando este blogue. Gosto de escrever despudoradamente sobre tudo. Maquilhagem, cuidados com a pele, estética, cirurgia plástica e saúde no geral, assim como partilho aqui algumas das minhas crónicas em que abordo tudo o que é possível e imaginário. Venham daí, conhecer o meu Mundo!

8 comentários

  1. Oh merda! Não me apetecia nada ler isto agora! Como se me aperta o coração..não me apetece...
    que benção ter uma mimi!
    Quanto ao ir um dia antes...tanto que pensei nisso também mas as mimis não merecem essa dor..que a suportemos nós e não elas! Que Deus nos conceda a sabedoria de beber os segundos que podemos ainda aproveitar ao invés de nos deixarmos assoberbar pela autocomiseração! E se fossemos rochas como elas e não..coisas como eu? Não me apetece...eu esfrego..terei que esfregar..ninguém mais para esfregar..detesto esfregar...detesto..

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  2. Infelizmente a minha avó Zinda, minha segunda mãe, é uma estrelinha lá no céu e ainda hoje, passados mais de 20 anos sobre o dia em que partiu para não mais sofrer, sinto tantaaa falta dela...dos beijinhos, do colinho, dos miminhos, dos abraços, dos conselhos, de tudoooo! Mas sinto que ela está sempre comigo, é o meu anjo da guarda e cada vez que olho para o céu estrelado penso que a estrela mais brilhante é ela! Adoro te avó!

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  3. Fiquei com um aperto tao grande ao ler isto! sinto falta de pessoas que já não voltam mais e agora estou tão longe que nem posso ao menos 'visitá-las'... Apenas trazê-las no coração!

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  4. Que aperto ler isto, que dor imaginar a dor de perder um filho.
    Não é justo :(

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  5. Houve uma altura,em que adoeci, e que os marcadores de analises apontavam para algo igual ao que omeu pai teve, enquanto esperavamos o resultado da biópsia, naqueles quase dois meses, a Mimi deixou de comer. de beber, de andar, de falar, desistiu de viver. Não aceitou que o destino lhe quisesse arrancar pela segunda vez e da mesma forma a pessoa que mais amava no mundo, ainda viva, eu.
    às vezes lamento-me de falta de amor. Mas enquanto aquela senhora viver... tenho a certeza, que não existe no mundo outra neta e filha , outro ser tão querido e amado quanto eu.Eu e os meus filhos , somos a razão pela qual abre os olhos todos os dias , a razão pela qual respira, pela qual deixa o sol penetrar-lhe a pele. Como me disse dois dias depois de eu fazer anos, no dia em que o meu pai faleceu "tu ficas comigo, és o meu tesouro, a herança que o teu pai me deixou ".
    Pode alguem ser tão amada?

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  6. eu também era muuuuuuito chegada à minha avó paterna, especialmente (foi a última dos meus avós a morrer e apeguei-me imenso a ela)... ela teve, como se diz, uma morte santa.. ela não era santa mas era uma pessoa com uma simplicidade extrema, carisma, humor, bondade, muito teimosa (eu sai a ela =p), era um encanto..adorava-a! a morte dela foi repentina, apesar de sabermos que ela lutava pela sua sobrevivência diariamente, sabíamos que ela era uma pessoa extremamente forte, a nível psicológico, e que já tinha aguentado com muito e muitos sustos desta natureza.... posso explicar mais tarde pormenores.. mas ela morreu a dormir... numa altura em que não era suposto eu estar perto dela.. enfim.. ao lembrar-me arrepio-me.. este assunto é-me muito sensível.. não consigo falar tão abem acerca disto.. desculpem.. já tou emocionada.. sim, eu amava-a e espero conseguir o seu orgulho..
    concluindo.. marta.. escreves de forma tão bonita..!! obrigada por me fazeres lembrar de quem contribuiu para a pessoa que sou hoje <3 **

    osmeuspassatempos

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  7. Mulher as tuas palavras me arrepiam a alma...

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