Entrevista " Nasci com o sexo errado"

Conheci a Silvia num grupo que criei onde a amizade é o mote. 
Ali   trocam- se ideias, desabafos, estados de espírito. É um grupo maioritariamente feminino, e após as apresentações esta mulher, que nasceu homem, apresentou-se de forma inteligente e com algum receio talvez das reações , assumindo ser transexual e lésbica.
Já foi casada, como homem, com uma mulher que amava muito. Tem uma filha e decidiu lutar pela sua felicidade, dando início a um processo que é ainda algo raro no nosso país. A mudança sexual verdadeiramente dita.   Vamos conhece-la.

AM-Posso saber a tua data de nascimento?

S-25 de Abril de 1973. Um ano antes da revolução 

AM-Vais desculpar - me mas existem assuntos em que sou uma leiga. Conhecemo-nos pouco, prefiro fazer perguntas que sejam consideradas ridículas que morrer na ignorância.

S- Eu sempre disse que nenhuma pergunta é ridícula quando o intuito é o de aprender.

AM-Como foi a tua infância?

S-Foi uma infância normal, acho. Tenho recordações boas. Nunca tive propriamente revelações precoces da minha feminilidade, mas nessa altura acho que as crianças nem querem saber disso. São crianças e pronto.

AM-Em 1973 nasceu um menino, é isso?

S-Tenho uma irmã. Brincávamos muitos com bonecas, tínhamos muitas brincadeiras que normalmente se atribuem às meninas, mas também jogava à bola. Por isso não acho que esse aspecto seja revelador de coisa nenhuma.
Prefiro dizer que nasceu uma menina no corpo de um menino. Mas sim, em termos leigos, nasceu um menino :)

AM-Como se chamava o menino?

S-As pessoas como eu não gostam de referir esse aspecto. Por vários factores, mas principalmente porque nos lembra uma vida que tivemos que viver e que não era a nossa.

AM-Posso perguntar te em que cidade nasceste ?

S-Nasci e cresci no Porto.

AM-Quando é que percebeste que alguma coisa estava errada?

S-No início da adolescência.
Nessa altura comecei a sentir necessidade de me vestir como menina, de ser uma menina. Mas ao mesmo tempo lutava contra isso, porque sentia que era errado. Tive uma educação católica um bocadinho rígida.

AM-Falavas nisso com a tua família?

S-Nunca! Pra mim era impensável falar com quem quer que fosse, família ou outra pessoa qualquer. Sentia uma vergonha imensa.

AM-Então... Como fizeste para ir de encontro aos teus desejos?

S-Lutei contra eles. Castrei-me. Sentia que era uma aberração. E anulei-me. Na altura não havia a informação que há hoje, não havia internet. Eu não queria ser assim. Sentia vergonha. Mas ao mesmo tempo, rezava todas as noites por um milagre. Para acordar no dia seguinte no corpo certo. Só que nunca acontecia...

AM-Entendo. Aliás, para entender a transexualidade imaginei como seria se nascesse homem, com o meu interior. Sou hétero e super feminina. Acho que deve ser uma prisão asfixiante.

Quando é que se deu o " milagre"?

S-É importante referir que só iniciei o meu processo com 38 anos. Já casada e com uma filha. Foi aí que comecei a procurar ajuda. No início só queria respostas. Só queria saber o que se passava comigo.
Foi uma luta imensa, até porque amava muito a minha mulher e tinha conseguido a vida com que sempre sonhei. Construir uma família, ter filhos e uma vida estável.

AM-Mas contínuas a gostar de mulheres. Certo?

S-Sim. Como o meu médico me dizia, passei de homem hetero a mulher lésbica. Não faço a coisa por menos ;)

AM-Que tipo de médico se procura? Cirurgião plástico?

S-No início é um psicólogo ou psiquiatra. Coo na altura eu vivia nos Açores, comecei por uma psicóloga. Como não havia lá ninguém especializado nesta área, encaminharam-me pra Lisboa. Mas é necessária uma equipa multidisciplinar. Psicólogo, psiquiatra e endocrinologista ou sexólogo clínico. Na fase das cirurgias é que vem o cirurgião plástico.

AM-Neste momento es uma mulher realizada. Estou certa? Conseguiste um milagre ?

S-Ainda não. Faltam alguns passinhos. Além da cirurgia, falta ainda conseguir arranjar um trabalho que me permita ter a minha independência. Isso é uma cruzada enorme para uma pessoa como eu. Já tive muitas portas a fecharem-se.

AM-Fisicamente, e pelo que vejo és uma mulher muito bonita. Os documentos manteem se os originais ou já houve uma mudança de nome que te evite constrangimentos?

S-Já estão todos mudados. A carta de condução foi o último :) Em relação ao elogio, agradeço e retribuo :) Mas a minha auto-estima já teve melhores dias... é algo em que preciso de trabalhar, sem dúvida.


A-Os tratamentos digamos assim, foram suportados por si?

S-As consultas de psiquiatria e psicologia estão isentas pelo SNS. Mas o resto sim. Consultas privadas, tratamento hormonal, terapia da fala, laser e electrólise... é tudo à nossa custa.
Eu tive que parar com o laser, electrólise e terapia da fala por falta de verba. Um dia retomo.
Mesmo ao nível das cirurgias, só a vaginoplastia, orquidectomia e mamoplastia é que são isentas. De resto tempos que pagar se quisermos fazer.

AM-Na minha opinião, que se calhar não tem muito sustento, mas que a dou porque sou uma chata , este tipo de situações podiam ter uma comparticipação de custos. Não estamos a falar em alguém que acordou e quis mudar de sexo, mas de uma condição que limita o bem estar e a psique. Limita tudo o resto. Arranjar um emprego para além de lidar com o preconceito da sociedade fechada que temos. Gays e lésbicas agora já não são um " problema" tão grande.Mas alguém. Que não se sinta bem com o sexo que nasceu é um pouco visto como ET. Estou errada?

S-Estás certíssima! Eu já senti isso imensas vezes na pele. E o que as pessoas não percebem é que isto é mesmo uma questão de vida ou morte. Porque há transsexuais que se suicidam. Há transsexuais que são assassinados. Há transsexuais que têm que viver na rua. E, claro, há transsexuais que se vêm obrigados a prostituir-se.

AM-Posso perguntar te como reagiu a tua família a esta mudança?

S-Foi complicado... a minha mãe já vai aceitando bem, agora. O que se compreende, porque vivemos juntas. Mas o meu pai e o resto da família... não respeitam os pronomes, não respeitam a minha identidade.

AM-És o familiar excêntrico?

S-A ovelha negra. Ou neste caso, a ovelha arco íris :)

AM-Como é quando alguém se aproxima de ti para um relacionamento? Abres o jogo?

S-Sempre! Logo de início. Mesmo depois da cirurgia não pretendo esconder. Por uma questão de honestidade. E porque não posso renegar quase 40 anos da minha vida.

AM-Já tens a data prevista para a cirurgia?

S-Ainda não. Estou ansiosa. Na realidade são duas. A Mamoplastia e a vaginoplastia. Em locais diferentes. Vai ser bonito, vai...

AM-Burocraticamente falando. Como se faz para deixar de ser ele para passar a ser ela?

S-Burocraticamente falando é muito simples. Tens o diagnóstico feito pela equipa multidisciplinar, chegas ao notário e pedes pra mudar a tua certidão de nascimento. E depois de o notário fazer isso, tiras logo no mesmo local o cartão de cidadão. Tudo junto demora menos de um mês, a correr bem.

AM-Ena. Portugal em grande!

S-Podem dizer o que quiserem, mas estamos à frente de muitos países ditos mais desenvolvidos nestas matérias.

AM-Qual a tua maior dificuldade neste momento?

S-Arranjar trabalho. Sem dúvida. E que as pessoas me tratem como se e não fosse um fetiche, animal de circo ou um ET.

AM-Em que gostarias de trabalhar? Que habilitações literárias tens?

S-Tenho o 12º ano. Fui burra em não ter ido prá faculdade. Talvez um dia... Fiz várias formações, incluindo em segurança privada. A minha experiência maior é na área administrativa, mas evito trabalho de contacto com o público, pra evitar constrangimentos.

AM-És  uma mulher com traços lindos de morrer. Como homem valham me os céus. Tens traços finos, e aposto que após lerem está entrevista muitas mulheres se vão lamentar pela tua orientação sexual. Desculpa. Não resisti

Conheces mais pessoas na tua situação?

S-Conheci, mas são pessoas que não interessam nem à vaca do presépio. Invejosas

AM-Ahahahahah

S-Não tenho culpa que tenham nascido com cara de desastre de automóvel...

AM-Aí tens uma vantagem que deve dar cabo delas

S-É. E depois andavam a inventar histórias sobre mim. Imagina que chegava aos ouvidos da minha ex mulher...

AM-Tens uma vida normal? Porque desempregados é o que não falta...

S-Tenho. Ou tento ter. Agora ando estupidamente caseira, mas tento sair sempre que posso.

AM-Pareces ser extremamente extrovertida. Ou apenas desbocada?

S-Eu não sei se sou introvertida ou se é simplesmente aquele estado de alerta permanente à procura de alguém que me olhe de lado. Agora já nem tanto, mas no começo era horrível...

AM-Queria que deixasses uma mensagem para quem nos lê. Pode ser?

S-A única mensagem que eu gostava de deixar é que nos deixem viver em paz. Sejam pessoas trans, sejam pessoas gay, seja qualquer outro tipo de diferenças. Não julguem. Aproximem-se e tentem perceber. Nós não queremos ser especiais nem superiores a ninguém. Queremos apensas ser tratados como iguais. Nós sangramos como qualquer pessoa e, acreditem ou não, o nosso sangue também é vermelho! Nós rimos, choramos, sofremos e amamos como qualquer comum mortal. Porque é isso que nós somos. Como dizia alguém "A natureza deleita-se na diversidade. Porque é que nós humanos não fazemos o mesmo?"



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Sobre a autora:

Chamo-me Marta, e sou apaixonada pela escrita e pelo mundo da beleza. Em 2013 , após um curso de maquilhagem profissional decidi juntar os meus dois amores, criando este blogue. Gosto de escrever despudoradamente sobre tudo. Maquilhagem, cuidados com a pele, estética, cirurgia plástica e saúde no geral, assim como partilho aqui algumas das minhas crónicas em que abordo tudo o que é possível e imaginário. Venham daí, conhecer o meu Mundo!

5 comentários

  1. É um post diferente ao ke estamos habituadas, mas mtoooo delikado e mto interessante... acho ke o essencial é as pessoas serem felizes...
    Kem está de fora nao imagina o ke uma pessoa dessas deve passar, para esconder mta coisa ou para disfarçar ou até mesmo para lutar para a verdade... pois ha mta gente ke nao entende nem aceita isso...
    Acho ke antes de se falar em algo devemos sempre pensar antes de dizer algo... pois nao sabemos o ke está por tras e os sofrimentos ke as pessoas passam...
    Acredito ke deve ser dificil e complikado enfrentar a familia e a sociedade... vocé realmente é uma vencedora. PARABENS...

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  2. Parabéns! Aplaudiríamos de pé se fosse propositado. Tiraríamos o chapéu. Ficámos realmente muito contentes com este desmistificar de algo que ainda é muito tabu. Muitos parabéns pela iniciativa desta entrevista, e uns parabéns especiais para esta mulher que faz muito, muito bem em ter coragem de se permitir ser quem é. Acreditamos que um dia tudo se modifique e este processo não seja tão difícil... Força!

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  3. É realmente uma mulher linda !!!
    E inteligente,bem falante,bem humorada e principalmente prima pela verdade absoluta...uma mulher como poucas !!!
    E tu Martita,gosto sempre tanto de te ler !!!
    Beijinhos para as duas

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  4. Impressionante. És linda por fora e por dentro.vais conseguir tudo nesta vida.
    Parabens por seres quem és Silvia

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