Quinze Anos



Disseram me que naquele dia não iria à escola.
Eu, que tinha feito 15 anos há dois dias detestava ir visitar o pai ao hospital.
Era assim há sete anos. Internamentos, altas, crises, internamentos.
Poucos dias antes do meu aniversário, na visita, percebi que já não conseguia falar. Olhava - nos, com os olhos rasos de água, inchados e vermelhos de quem passava boa parte do seu dia a chorar. Aceitava a comida que a mãe lhe colocava na boca, e o seu olhar provocava - me uma tristeza que eu não sei ainda hoje explicar.
Não sei se se sentia diminuído, se acalentava a esperança que fosse apenas mais uma crise.
No dia dos meus anos chamaram-nos. Passaram-me o seu espólio. Relógio, aliança.
Senti um nó na garganta .
Iam transferi-lo para o Hospital dos Capuchos .
Hospital que eu conhecia tão bem. Desde os meus 8 anos que o percorria, para ver o meu pai .
À entrada da ambulância olhou-me a chorar. Eu chorei também. Sem dizer uma palavra.
A minha mãe disse: Deve lembrar se que fazes hoje quinze anos.
A ambulância foi em marcha de urgência. Os pulmões estavam a falhar. Os rins e o coração também. Era preciso um sitio que o pudesse aliviar de todo aquele sofrimento.

Estamos as três mulheres da sua vida(fora a minha irmã que era ainda muito pequena) à espera na porta da unidade de cuidados intensivos. A enfermeira aproxima-se, vinda de dentro da unidade, e pergunta qual de nós quer entrar primeiro.

Pedi para entrar eu e nem esperei pela resposta.
Vestiram-me de forma a que me senti uma astronauta. Tal como todos que ali estavam. Duas enfermeiras olhavam para mim com ar triste. Perguntaram me "Querida, sabes o que vais ver? O pai está muito mal... Não sabemos quanto tempo tem mais..."
Fitei-a nos olhos. Disse-lhe que sabia. Perguntei - lhes se ele sentia dor. Juraram que não.
Senti-me mais aliviada.
"Se quiseres dizer-lhe alguma coisa... Aproveita agora  ... Ele está num semi coma, não podemos jurar que te ouve, mas como não sabemos se o tornas a ver... Fala. As vezes os doentes reagem a esse tipo de estímulos. Quanto mais para lhes dar paz. Vozes conhecidas. "
Entrei para um quarto em que as camas estavam divididas por cortinados. Todos os doentes estavam entubados. Ligados a monitores. A enfermeira deixou-me ao pé de um homem de pele roxa, com fita cola nos olhos, e um tubo na boca.
O homem que tantas vezes me deu colo, que me fazia rir à gargalhada. Que me adormeceu tantas vezes ao colo. Fingi tantas vezes estar a dormir apenas para ser levada ao colo para a minha cama. O mimo dele era o melhor do Mundo. O homem que adoeceu aos 28 anos. E que aos 36 estava tão perto do fim.
Agarrei-lhe nas mãos. As pontas dos dedos estavam negras, necrosadas. Não era de agora.
A pele escamada, aquele homem enorme que outrora pesara 80 kgs não tinha mais que 40 agora.
O homem que quando eu tinha 13 anos passou a noite a passar-me rolos de papel higiénico para me secar as lágrimas, porque o rapaz por quem eu me tinha encantado ia emigrar.
O homem que me levou a ver o ET ao cinema. Quando eu tinha 6 anos.
Que me fez uma casinha de bonecas em madeira.

A enfermeira aproximou - se. Fez - me uma festinha na cara. Tinha os olhos brilhantes. Percebi a sua comoção.
Afastou-se, e eu, Maria Brusca sem sentimentos, aproximei-me mais dele, sempre com receio de o magoar, pois a cada toque ele gemia e gritava. Percebi que já não sentia dor. Estava desacordado. Semi coma.
Era agora ou nunca.
"Pai, aconteça o que acontecer, gostamos todos muito de ti. "
Senti um nó na garganta . Saí com a sensação que o fim estava próximo. Talvez um mês... Nem tanto.
Entrou a mãe depois, que me perguntou quando foi a avó a entrar :" disseste alguma coisa ao pai? Tinha lágrimas a escorrer do rosto. "

" ouviu-me"pensei entre o orgulho e a vergonha . Os adolescentes não dizem essas coisas, achava eu. É coisa de gente fraca.
A avó saiu aos prantos. Ver um filho assim...

. Eram 20.30. Eu estava em casa a ler . A mãe tinha saído com a minha irmã. O telefone toca. Era a mãe. Percebi que alguma coisa tinha acontecido. Obriguei a a dizer o que se passava . Não queria contar por telefone.
Insisti. Ao que disse já se m forças. "Acabou marta . Acabou tudo."

O telefone caiu me das mãos. Chorei compulsivamente não sei quanto tempo.
"Nunca mais o verei sorrir . Nunca mais olhará para mim. Odeio o nunca mais . "

No dia seguinte, eu, que tinha dormido com a mãe, na cama dos pais, levantei me, e após escolhermos a roupa, dirigimo nos à funerária .
A mãe tinha uma fobia com tudo o que se relacionava com morte . Entrei sozinha naquele cubículo onde caixões estavam empilhados como se fossem cada um o colchão de um beliche.
O agente, falava me na beleza de cada urna . Que eram em mogno, que o revestimento era em cetim, incluía mortalha.
Enjoada escolhi um qualquer. Todos me pareciam horrorosos.

Quando chegamos à morgue do S. JOSÉ, eu, o avô, a avó, a mãe uma tia e um tio, aguardamos após dar aos funcionários a roupa que o pai deveria vestir.
Pouco tempo depois, mandam-nos entrar.
O caixão estava aberto. O corpo coberto por uma mortalha branca . Rodeamos o caixão. Aproximei me dá parte da cabeça. Destapei-o.
Ouvi os gritos dos meus avós. O choro dos meus tios . Senti a minha mãe agarrada a mim. Não conseguia parar de o olhar. Parecia dormir. Descansado. Não havia qualquer expressão de dor no seu rosto. Não chorei. Senti - me aliviada. Tinha acabado tudo. Inclusive a dor que o fazia gritar e gemer, e não me deixou dormir tantas e tantas noites.
Os pés não estavam calçados. Tinha os pés necrosados. Cobertos por ligaduras. Os sapatos não lhe serviam. Disse à minha mãe que só Acreditava que ele estivesse em paz se lhe mexesse nos pés e ele não gritasse.
Toquei. Apertei. E percebi que o homem que mais tinha amado na vida já não sofria...
Aquele corpo frio já não era ele. Estava em frente à casca de uma alma. Casca essa que apodrecera cedo demais.
Pedia que a luz que nela morou me acompanhasse sempre....


As saudades destroem nos. Ao fim de 25 anos não sinto menos dor. Sinto injustiça.
Um dia. Um dia vamo-nos ver de novo.

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Sobre a autora:

Chamo-me Marta, e sou apaixonada pela escrita e pelo mundo da beleza. Em 2013 , após um curso de maquilhagem profissional decidi juntar os meus dois amores, criando este blogue. Gosto de escrever despudoradamente sobre tudo. Maquilhagem, cuidados com a pele, estética, cirurgia plástica e saúde no geral, assim como partilho aqui algumas das minhas crónicas em que abordo tudo o que é possível e imaginário. Venham daí, conhecer o meu Mundo!

1 comentários

  1. Ohhh minha kerida ke triste... emocionou.me ke historia triste... doi mto né... força e coragem kerida...

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