Era uma menina, igual a tantas outras, mas, por dentro sempre se sentiu diferente. Habituada a olhar para o espelho e a não se identificar com o que via, como se aquele não fosse o rosto que recordasse ter, como se cada vez que visse o seu reflexo desse um salto achando que era outra pessoa que a espiava. Enquanto pequena, a família dizia que era linda, e, para dizer a verdade, era uma criança normal, de olhos tristes e meigos. A verdadeira tristeza veio depois, quando já tomava o colo do pai por garantido e este deixou de existir. Quando começava a ver na mãe uma amiga e esta decidiu recomeçar a sua vida sem mim. Ficando a viver numa intermitência entre os avós maternos e paternos, que verdade seja dita, haviam sido escolhidos pelo Universo " a dedo".
Os "avós de Verão", os maternos, aturavam-me durante três meses seguidos, num lugar em que se juntavam pobres e mais pobres ainda, se alugavam terrenos para tendas de campismo, a avó cedia a arca para todos os " rendeiros"( como lhes chamava) e aqui e ali, avó e neta se divertiam com a presença constante daqueles que passavam o ano a sonhar com aquelas férias num pedacinho de terra que lhes arrendava a " ti Mari da Luz", a minha querida avó, que tanto me avisou que um dia , quando ela cá já não estivesse, eu a ia lembrar muitas vezes. Avó profeta , aquela.
Divertiamo-nos com uns que falavam mal dos outros , entrava um, saiam outros e a lengalenga era igual, só mudavam os nomes.
A avó fazia limpezas em casa das " meninas de Lisboa", umas senhoras na sua maioria solteironas, quase todas elas licenciadas, filhas de doutores , meninas essas que tinham idade para serem minhas avós e que recordo com tipo muito masculino, a fumar noite e dia. A minha mãe era afilhada de uma dessas doutoras , e levou o nome Margarida em homenagem à madrinha ( sorte a dela, há 64 anos os nomes comuns não eram tão generosos como o que lhe calhou).
Todos os anos , lá ia a mãe ao chamado da madrinha, buscar roupas que as doutoras já não queriam, afinal tinham uma vida desafogada, ou pelo menos mais privilegiada que a nossa, e mais valia partilhar que deitar fora. A caridadezinha fica sempre bem. Nunca souberam elas que éramos bem mais magras e jovens, já agora, e que nada nos caía bem.
Para além disso, os meus pais sempre trabalharam muito, o que não significava que tinham muito dinheiro, eram funcionários públicos portanto naquela altura, significava apenas que trabalhavam muito.
E foi aos meus 12/13 anos que, vendo a minha prima com mais um ano que eu trabalhar no verão, comecei também a trabalhar.
E que descoberta fantástica aquela de fazer algo que me divertia e me trazia o peso de responsabilidade e me possibilitava guardar dinheiro para as roupas de inverno e material escolar. Queria roupas de marca? Comprava com o dinheiro do meu trabalho. Mas tanto serviam as de marca quanto as da feira que tinha sempre coisas girissimas a cem ou duzentos escudos. Feira de Peniche anos 90. Não havia melhor .
Recordo o meu pai já muito doente ir visitar-me ao final do dia, com o sol já baixo, já que o Lúpus lhe dava uma condição de quase vampiro e o seu olhar entre o orgulhoso e o triste.
A vida era melhor antes? Era. Talvez por isso o meu pai tenha feito um esforço hercúleo para sobreviver a cada crise e poder viver mais e mais um bocadinho. O meu pai chorava compulsivamente enquanto dizia que não queria morrer. Mesmo que a pele lhe rasgasse. Mesmo que o cérebro , a depressão lhe causasse psicoses que o tornavam violento e agressivo. O meu pai, soube aos 29 anos que teria uma morte lenta e dolorosa. Que aos poucos deixaria de andar, que o cabelo lhe cairia, que os órgãos entrariam em falência, que a pele iria rasgar, escamar, necrosar. Aos 30 anos caminhava de bengala. Depois deixou de andar.
O meu pai nunca auspiciou grande futuro para mim. Ou talvez fosse a sua frustração a falar mais alto. Anos mais tarde o meu avô, pai do meu pai, sanou todas as feridas, sendo o pai dos pais, sendo o grande presente do universo para mim. Mostrando vezes sem conta e a cada conquista o orgulho que tinha em mim, na minha inteligência, na forma como as minhas palavras tocavam os demais e o faziam chorar de orgulho e amor, dizendo que tinha a certeza que um dia eu seria alguém.
Para o meu avô, um homem essencialmente honesto e cumpridor, a minha vida era eu quem escolhia. A única coisa que importava era a minha felicidade. Casada ou divorciada, rica ou pobre, a trabalhar num escritório ou a varrer ruas.
Para ele, enquanto os meus filhos fossem pequenos era importante que ficassem comigo. Não era ordem , era opinião. Acabei por cuidar dos meus filhos e dele a quem a Alzheimer pregou uma partida, bem cedo. Nem que ele tivesse 100 anos, seria sempre cedo.
Voltando atrás, aos 15 anos, precisamente dois dias após completar 15 anos soube da morte do meu pai, via telefone.
Eram oito da noite e tinha acabado de falecer. Eu estava sozinha em casa e embora achasse que já estava mais que habituada à ideia que ele não viveria muito mais, nunca ninguém está preparado para ouvir " acabou tudo. O teu pai morreu". Menos ainda aos 15 anos. No dia seguinte, eu e a mãe dirigimo-nos à agência funerária ( nunca tinha ido a uma) e foi-me pedido no interior de uma sala em que os caixões estavam dispostos em beliches que escolhesse um " caixão bonito" para o meu pai. O esforço do agente funerário pouco mais velho que eu e que anos depois se tornaria meu compadre, casando com uma das minhas melhores amigas parecia totalmente descabido. " Caixão bonito? Escolha você ". Fomos com ele a Lisboa buscar " o corpo". Durante a viagem era ensurdecedor o barulho do caixão que balançava na estrada antiga Torres Vedras - Lisboa. Confesso que não consegui retornar com o caixão com o meu pai lá dentro. Não sei quantificar a dor que tinha após ver na morgue o corpo do meu pai disposto dentro do caixão, e ter apertado cada pé, cada não, na esperança que gritasse, como fazia cada vez que algo lhe tocava em tais locais em vida. Mas o rosto dele não mudava. A voz dele não se pronunciou. Era o meu pai morto num caixão com os meus tios avós, os meus avós maternos e a minha mãe à volta a chorarem compulsivamente. E era eu que só tinha 15 anos acabados de fazer. E aquele era o meu pai. O colo , a brincadeira, as histórias .Os meus filhos não teriam avô paterno, eu não teria quem me levasse ao altar. Acabara o dia do pai.
Luís Augusto Lemos Ferreira. Nascido a 1 de Fevereiro de 1956, falecido a 1 de Junho de 1992.
Meu pai.
Parece que foi noutra vida. Tenho mais anos sem pai que com pai. 30 anos sem pai.
Não sou a única ,bem sei. O Mundo esta cheio de histórias de vida onde reina a doença e morte .
Há muita coisa sobre a minha vida que eu preciso escrever. Ainda não tive coragem. Por respeito à minha mãe que aos 64 e apesar de não ter sido muito presente se encontra demente, com aylzheimer.
E é aí, que percebo que apesar de me dar pouco, de ter optado por recomeçar uma vida longe de mim, fez por ela, acho otimo. Se eu faria o mesmo? Não. Mas não, talvez porque não faria a um filho o que me fez morrer de tristeza.
E então, é aqui que entendo que todas as falhas, que todas as ausências, que todas as injustiças que sofri fizeram de mim quem sou hoje.
Hoje, em conversa com o pai do Santiago, perguntava -me se seríamos nós que estávamos mal no Mundo. Não fazemos mal a ninguém. Não negamos ajuda a ninguém e ultimamente estamos a atravessar uma fase que honestamente? Não mereciamos. Lutar com doenças é uma luta injusta. Não sabemos o que nos espera , mas a amizade que nos une amortecerá toda e qualquer dor. Estamos juntos na educação dos meninos e no bem estar um do outro. Mesmo que separados.
Se eu pudesse escolher, entre ter nascido e não, terei de ser muito franca. Sinto que toda a minha vida cuidei de alguém. O meu cansaço é tal que se não misturar a minha paixão pela cosmética e pela comunicação, o amor pelos meus filhos, não estou cá a fazer muito POR MIM.
É que chega a um ponto que não são médicos, psicólogos e psiquiatras que por melhores que sejam te conseguem fazer sentir melhor.
Tomas Rivotril para fugir à dor, à ansiedade, ao pânico. Mas não estarás a fugir ao frente a frente com as tuas emoções e fracasso?
Os meus filhos. Foi isso que vim fazer a este mundo. Cuidar da minha avó de 93 anos . Do meu Luís Augusto ( marido). Aprender a compaixão com a minha mãe.
Sabem que é inacreditável. Sempre pensei que nada que acontecesse à minha mãe me pudesse fazer sofrer.
Como estava enganada.
E é simples.
A minha mãe não era a mãe de folhetim que faz tudo pela filha mais velha, que sofre, sacrifica , luta por ela. Não. Era a mãe do " desenrasca-te". Lembro-me aos 13 anos ter uma crise de asma que tive que andar agarrada as paredes até ao hospital ao que olhou para mim em casa e disse " estás mal? Vai ao hospital, não tenho nada com isso". Cruel, não? O meu filho de 19 vai-me debaixo do braço para o médico. Mas por mais que tenha custado, sofrido, ensinou-me que eu não seria assim.
Já não nutro nada de negativo por ela. Foi a mãe que pode ser. Foi a mãe que tive. Apesar disso, sinto tantas saudades da mãe que me aparecia em casa com chocolates para os meus filhos. De dançar com eles e fazer parvoices para os netos rirem. Da mãe que eu maquilhava para ir para as festas. Que eu pintava o cabelo. Que acompanhava ao Baleal para que tratasse o pai acamado.
Agora tenho uma mãe que não me conhece, que me é ríspida, que já não existe, que não passa de um envolucro de uma bala extinguida há muito.
Tenho sim, um padrasto incrível, que foi provavelmente o melhor que aconteceu na vida dela, por quem sempre foi completamente apaixonada, a quem eu admiro e sou grata .
A vida é uma merda amigos. Não vale a pena romantizar. Gostava muito de não achar isto. De passar para os meus filhos uma ideia diferente, e acreditem que os educo fazendo crer que podem ser quem quiserem. E acredito nisso. São muito mais inteligentes que eu era. Têm muito mais amor.
E se eu venci em alguma coisa na vida foi a dar todo o amor materno possível e imaginável.
Não os estraguei. Tornei-os seguros das suas capacidades, defendo-os de tudo e todos que os queiram magoar e vai ser assim até ao último dia da minha vida.
Vida essa dedicada aos homens da minha vida. Ao meu Gastão, aos meus Luises, Santiago e Henrique.
Se não te identificas com nada disto, não faz mal. Temos todos vidas diferentes.