A história que vos trago hoje requer que recue um pouco no tempo, antes de ela ter acontecido.
Sofia de Moçambique
Quando cheguei a Moçambique, em 2011, não fui viver na capital mas sim numa cidade a 2500km de Maputo, onde existiam grandes promessas de desenvolvimento. Fui recebida e acolhida pela família do meu então namorado (actualmente meu marido) que cuidou de mim, cuidaram tanto que hoje vejo que fui colocada quase numa redoma de vidro, mas agradeço por isso, na finalidade só me queriam proteger visto que estava a milhares de quilómetros de casa e num mundo completamente novo para mim.
Pouco tempo depois de casar engravidei. Uma grávida tem milhares de hormonas novas e estar em África ao lado de tanta miséria e longe da família, acreditem que não foi fácil.
Um dia, estava eu sentada ao lado de uma pequena lojinha (aqui chamada de barraca) a beber um sumo e a aproveitar a brisa que passava por ali. Do nada apareceu um rapazinho que deveria ter os seus 8 ou 9 anos e falou para mim na língua local, Macua, ( a língua oficial em Moçambique é o português, falado pela maioria das pessoas que frequentam a escola e vivem nas cidades, nas zonas pobres a maioria das pessoas fala mal o português porque só se comunicam nas várias línguas locais, Moçambique tem mais de 15 línguas diferentes), eu só sabia meia dúzia de palavras e pedi ao rapaz que trabalhava na barraca para me traduzir. Aquele menino disse que queria dançar para mim e em troca eu lhe daria algumas moedas para ele comer, mesmo sem ele dançar logicamente que eu lhe ia dar comida, mas achei divertido e disse para ele dançar. Bem... foi uma risota total... mas acabei por pedir para lhe dizerem para parar e comprei na tal barraca sumo, bolachas, pão e um bolo e dei-lhe para ele comer.
Sabem qual foi a primeira coisa que ele fez??
Partiu o pão a meio e deu-me metade... estão a imaginar eu a ver aquele miúdo e a ter a certeza que estava esfomeado a ter aquela atitude? Tive que me conter muito para não começar a chorar ali (lembrem-se estava grávida, aquilo mexeu mesmo comigo).
Recusei, pedi para lhe dizerem que eu tinha acabado de comer. E fiquei ali, a ver aquele menino esfomeado a comer. Ele estava mesmo com muita fome. Depois sempre com tradutores acabei por saber que há vários dias que ele não comia nada de jeito.
Quando acabou de comer disse-me que queria que eu fosse mãe dele...
Aquilo foi uma das coisas que me disseram que causou mais impacto em mim, fiquei destroçada. Eu que ia ser mãe pela primeira vez a ouvir aquilo... não consigo explicar por palavras o que senti, mas nunca vou esquecer o que ele disse.
Pedi para fazerem imensas perguntas, onde era a casa dele, mas não dava uma resposta concreta e quando me traduziam diziam que ele tinha algum atraso mental porque as respostas dele eram incoerentes. Sou teimosa e não acreditei muito nisso, acabei por descobrir que fugiu de casa, que a mãe lhe batia muito e tinha de ir para a escola descalço, além de ser obrigado a trabalhar muito.
O nome dele é Anly.
Se dependesse das pessoas que estavam a minha volta aquele miúdo teria ido embora e nunca mais saberia nada dele. Mas desta vez eu ia sair da redoma de vidro e tomei uma decisão aquele menino ia ficar sair das ruas e ficaria comigo.
Começaram os problemas e vinham pessoas de toda a parte para me vir convencer que eu não podia ficar com ele, ele tinha família, podia ser acusada de rapto, ele podia adoecer e morrer e eu iria presa porque iam dizer que eu o matei, disseram que ele era um miúdo da rua, que essas crianças aprendem a roubar e se eu o pusesse na minha casa um dia quando chegasse do trabalho só iriam restar as paredes... foram tantos os argumentos e tantas pessoas e dizerem-me o mesmo que eu tive de tomar uma medida, falei com a polícia e disse que tinha encontrado aquele menino, tinha fugido de casa e não sabia explicar o caminho de volta. A polícia autorizou-me a ficar com ele até se encontrar alguém da família.
Fui a uma rádio local e pedi para anunciarem o aparecimento dele e se a família estivesse à procura dele para o vir buscar na minha morada.
Fui a uma rádio local e pedi para anunciarem o aparecimento dele e se a família estivesse à procura dele para o vir buscar na minha morada.
Uma semana depois apareceu um primo dele e levou-o, eu estava a trabalhar e ele veio ao meu escritório despedir-se de mim.
Fiquei triste, mas ao mesmo tempo apaziguada porque ele tinha realmente fugido de casa e a família dele estava a procura-lo.
No início de 2013 já tinha a minha filha nascido e eu já tinha realmente saído da tal redoma de vidro de vez...trabalhava (e trabalho até hoje) a ORADE - Orfanato Ajuda de Deus, num orfanato que tem também como objectivo a integração de meninos de rua nas suas famílias, dando pequenos incentivos para a educação e alimentação deles, incentivando também a aprendizagem de uma arte para mais tarde ingressarem no mundo do trabalho (carpintaria, serralharia, costura, etc.)
Um dia ele apareceu na minha casa, magro e num estado lastimável, sujo, muito sujo. Mas naquela altura e já era profissional em lidar com estes casos, infelizmente o caso dele era só um entre centenas que fui conhecendo e resolvendo com a enorme equipa de voluntários e muito graças ao nosso presidente José Fiel Anela. A quem aproveito para agradecer a sua dedicação a 100% a todas as causas humanitárias e sem o qual eu nunca poderia ter entrado num mundo tão distante do meu.
Disse para mim...desta vez não o deixo ir.
Ficou em minha casa. Comprei-lhe roupas, brinquedos e ele nem sequer queria sair de casa, só queria estar perto de mim e nem aceitava ir brincar na rua com os outros miúdos. Aqui em Moçambique ainda se brinca na rua à vontade. Obriguei-o a ir brincar e assim foi a rotina durante 1 mês. Passeava comigo, brincava com a sua irmãzinha, a minha filha, íamos à praia, ele já era da família. Claro que todos os dias eu sabia que tinha de ir falar com a família dele, mas estava a adiar... ok, não estava a agir bem. Mas tinha muito medo que o roubassem de mim. Um dia estava numa loja e encontrei um senhor que o conhecia, era vizinho da família dele. Claro que o enchi de perguntas.
Acabava de ter a certeza que a família não o cria. Que o tratavam mal e que ele fugia constantemente pelos maus tratos sofridos.
Aquele senhor prontificou-se a ir comigo a casa da família e pedi para os avisar que se o quisessem vir buscar que ele estava em minha casa...ninguém veio.
Ele continuava a não falar quase nada português e eu apesar de perceber macua também não falo quase nada.
Um dia chego a casa e toda a casa cheirava a perfume, ao meu perfume... como naquela altura eu tinha acolhido uma menina também ( essa história fica para uma próxima vez) fui lhe perguntar porque toda a casa estava a cheirar assim. Ela disse-me que ele andou a usar o meu perfume. Fui procurar o frasco e estava vazio. Perguntei-lhe porque fez aquilo e ralhei com ele. Em português...provavelmente ele não entendeu metade. Disse lhe para ele ir lá brincar lá fora porque eu estava mesmo irritada.
Anoiteceu ele não voltava para casa...pedi a uns guardas dos prédios para o procurarem... nada.
Ele tinha desaparecido...
Fiquei destroçada. Senti imensa culpa, mas eu tinha que o educar e na verdade eu só ralhei com ele por algo errado que ele fez.
Os meninos com quem ele brincava disseram-me que ele se despediu deles e pelos vistos tinha entendido que eu o mandei embora.
A vida continuou mas claro que nunca o ia esquecer.
Depois de ter passado uma temporada em Portugal um belo dia ele apareceu na rua, eu estava na varanda e pediu para subir.
Dei-lhe comida, roupa e dinheiro e disse para ele ir para casa da mãe.
Sou sincera, desta vez não me queria prender emocionalmente.
Ele passou a vir aqui com frequência e disse que para casa da mãe não voltava, que preferia ficar na rua. Claro que não o deixei ficar na rua e ele passou a viver aqui em casa novamente.
Neste momento estou a tentar criar condições para ele ficar aqui e em Fevereiro ir para a escola. (O ano escolar começa em Fevereiro aqui).
Ele tem realmente um atraso no desenvolvimento, ou seja tem cerca de 12 anos, mas grande parte dos comportamentos assemelham-se a uma criança de 6. Não é para mim qualquer problema, porque para mim todos são iguais, mas lõgicamente que terá necessidades educativas especiais que eu não sei até que ponto conseguirei custear ou até mesmo arranjar visto que aqui o desenvolvimento nessa área é pouco ou nenhum.
Já consegui falar com a mãe dele que agradeceu por ficar com o filho, não me pediu dinheiro mas sei que o poderá vir a fazer.
A casa da mãe é muito pobre, sendo as paredes feitas de bambu e um pouco de barro, o telhado de palha. A mãe admitiu que em casa faltava tudo, mas o principal era a comida, por isso ele fugia para pedir dinheiro na cidade e procurar comida no lixo.
Esta história ainda não teve um desfecho mas desta vez vou lutar até ao fim. Não sou rica mas tenho na medida em que posso comprado roupas novas para ele e pelo menos alimentação e um tecto tem garantido.
Mais uma vez digo que esta é uma entre milhares de histórias. Não a estou a partilhar para dizer que sou mais do que alguém e muito menos para receber louros sobre ela. Decidi partilha-la pela primeira vez porque estas crianças precisam de nós. Precisam da ajuda da comunidade e do mundo em geral.
Convido todos os que queiram vir localmente conhecer de perto esta realidade e a ajudarem de alguma forma a minimizarem o sofrimento destas crianças a virem, eu poderei pessoalmente mostrar-vos tudo.
Obrigada Marta pela iniciativa no teu blog. Estou certa que esta será a grande porta de abertura para o mundo das crianças que estão neste momento a sofrer. Sofia de Moçambique
9 comentários
Deveria haver mais pessoas como a Sofia!! É de louvar!!!
ResponderEliminaremocionante!!!!
ResponderEliminarHistoria emocionante mesmo.. Era tão bom se todos conseguisse ajudar.
ResponderEliminarParabéns Sofia pela atitude e não desista desta historia.
E parabéns a Marta por deixar um espaço para uma historia tão real.
Obrigada Marta, o que quis realmente transmitir é que aqui são milhares de crianças na mesma situação.
ResponderEliminarE sim, podemos fazer alguma coisa para mudar isso.
É para mim um orgulho quando vou na rua e tenho crianças, alguns pré adolescentes a virem ter comigo e dizerem "titia eu ainda estou a estudar".
Todos podemos fazer alguma coisa para mudar isto.
Obrigada Cátia Sobral pelo teu comentário. Beijinhos e bom Natal a todos.
Olá linda :)
ResponderEliminarEstás nomeada para a TAG Have a very Bloggy Christmas
http://theblueeyesgirl2014.blogspot.pt/2014/12/tag-have-very-bloggy-christmas.html
Beijinhos
The Blue Eyes Girl
Estou emocionada, que é o mesmo que dizer a chorar, já não há muitas pessoas com um coração assim, infelizmente!!! Muitos parabéns à Sofia pela atitude, e á Marta pela disponibilidade neste blog, que não é da treta, mas sim da vida!!!!
ResponderEliminarA história é simplesmente tocante, é impossível ficar indiferente. Mostra que tem um coração do tamanho do mundo. Parabéns pela pessoa que é
ResponderEliminarLi toda a história e achei lindo a sua atitude Sofia, já não existem muitas pessoas que fizessem algo desse género muitos parabéns pela pessoa magnifica que demonstra ser. Parabéns Marta por trazeres ao teu blog não só a beleza das make up como também a realidade de muitas vidas! 😙
ResponderEliminarLi tudinho do principio ao fim, sou capaz de explicar a quem me perguntar tudo o que li sem olhar, é uma historia de amor por uma criança sem duvida, a Sofia tem um grande coração passou por cima de todos para que este menino nao fica se na rua, deu lhe de comer roupa e o um tecto em que ele pode ficar.
ResponderEliminarSei que é uma realidade constante nestes países, estas crianças devem ser ajudadas, são crianças, lembrem se que esta realidade podia ser cá em Portugal, tb há, mas em Moçambique, Angola os casos são mt mais graves, nao há condições, nao há mts hospitais em certas zonas, é mt pobreza.
Sofia tiveste um acto de muita coragem e muito amor. Parabéns pelo gesto lindo que tiveste com o ANLY <3
Obrigada pelo teu comentário!